domingo, 29 de junho de 2025

31 / De Luís Palma Gomes, "Pax simulata"

 

Pax simulata


Somos grandes gatos, tu e eu.

Por isso, dormitamos no sofá 

a ouvir a imitação da chuva

que o filtro do aquário faz ressoar na sala. 


Gostamos de estar assim, 

horas e horas, tentando

acalmar a bravura do relógio.


Porque a paz não é bem a paz, 

mas apenas a ausência da guerra.



domingo, 18 de maio de 2025

29 / De António Rosa, "Luís, o que queria trabalhar..."


Luís, o que queria trabalhar...


Luís era um pobre diabo que não tinha onde cair morto, como soe dizer-se.

A fome agora apertava e nem sequer um biscate, um mandado, nada lhe aparecia que lhe pudesse trazer uns pequenos trocos para uma bucha. Embora se envergonhasse já começava a pedir, depois que a polícia correu com ele do parque de estacionamento, mas até as pessoas com cara de caridosas lhe negavam a esmola.

Luís estava mesmo a passar mal. Deambulava por aquela rua abaixo, que vai dar ao antigo parque industrial, sem rumo definido, andando por andar. Passou ao portão de um velho pavilhão onde ouviu gente e máquinas a trabalhar. Veio-lhe à cabeça a resposta que alguém lhe dera ontem, quando pedia esmola: “Vai trabalhar, malandro…”. Será que aquele sujeito tinha razão? 

Luís parou, passou as mãos pelos cabelos desgrenhados, na tentativa de melhorar a má imagem, sacudiu também a poeiras das calças e decidiu-se a bater ao portão. Eis que naquele instante este se entreabriu e surgiu um homem de meia-idade, bem vestido e de telemóvel ao ouvido, que esbracejava, visivelmente irritado e passou por ele sem o ver. Deu três ou quatro passos na calçada e voltou para junto do portão. “Tive de sair, que lá dentro com o barulho das máquinas não te consigo ouvir. Isto está mesmo impossível, não sei o que hei-de fazer. O pessoal está a faltar de uma maneira assustadora. Uma está de férias de parto, dois dos que mais falta me fazem estão doentes, já há uns dias. Outro telefonou-me ontem à noite a dizer que hoje não poderia vir porque lhe morreu o sogro. Até o rapaz dos recados hoje faltou. Não tenho ninguém para fazer a entrega das encomendas. Isto está um caos completo. E logo numa altura destas em que não posso fechar, que era a vontade que eu tinha…” E continuava a conversa gesticulando, dando pontapés em pedras da calçada, que não tinham culpa nenhuma, à beira de um ataque de nervos.

Luís apercebeu-se que aquele era o patrão. Tinha de lhe pedir emprego, mas era óbvio que aquele não era o momento apropriado.

Entretanto o homem, quando se voltou para entrar, reparou naquele rapaz andrajoso ali encostado ao portão. “Quem é você e o que quer daqui?” 

Luís, um pouco envergonhado respondeu: “Sou o Luís e vinha pedir emprego pois preciso muito de trabalhar, em qualquer trabalho que seja, pois estou a passar fome. Agradecia-lhe muito.”

Diz o patrão: “Não é que eu não esteja a necessitar de colaboradores, mas agora não tenho tempo para o atender.”

“Não faz mal, eu posso ficar aqui à espera”, respondeu o Luís enquanto se sentava no chão, encostado ao portão de ferro, que estremeceu quando o patrão o fechou.

Já no gabinete, sentado à secretária, passava a mão pelo pouco cabelo num gesto de preocupação. Como é que vou entregar estas encomendas que têm que chegar aos clientes impreterivelmente hoje? Nem sequer posso sair daqui, com a falta do encarregado.

Entretanto, pela janela entreaberta ouvia-se da rua uma multidão que gritava: “Deixem trabalhar o Luís”. Iluminou-se. Correu ao portão a chamá-lo e disse-lhe: “Você vai entregar isto.”


sábado, 26 de abril de 2025

27 / Joaquim Saial, "Humilhação"


Humilhação


Aquele leão era o mais destrambelhado e mau caçador do bando. Quando ao tentar atacar um elefante foi agarrado pela tromba deste e projectado contra o grande imbondeiro, o que mais o vexou não foi esse facto, mas sim ouvir toda uma alcateia de oito hienas a rir-se às gargalhadas da sua desgraça.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

26 / Luís Palma Gomes, a partir de um verso de "Tabacaria", de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa

 

Há tantos que não pode haver tantos

porque se houvesse tantos, nem um havia.


E mesmo que houvesse um,

como seria ele singular e autêntico

se os outros eram tantos?


Não, não pode haver tantos

sem que rompesse de imediato

um escândalo e uma catástrofe,

por haver apenas um entre tantos.


e no final esse tal seria afinal nenhum,

para que continuasse a haver tantos,

apesar de não haver sequer um.


25 / Carlota de Barros (Cabo Verde), "Noite de lua cheia"


Noite de lua cheia                 


Tenho gravado nos meus olhos

O luar que me extasiou

Numa noite 

Em que a lua cheia 

Me seguiu

Calma e segura 

Pelos caminhos por onde ia.


Ó noite de lua cheia 

Tão calma ... tão bela...

Que ficaste gravada 

Nos meus olhos

Até adormecer.


E como é belo o luar 

Que tão naturalmente        

Nos fica nas mãos e na alma!


Ó doce lua cheia 

Tão calma tão bela

Que ficaste nos meus olhos 

Para sempre.

Que mistérios escondes 

Noite de lua cheia?

Ó noite de luar  

Noite de doçura  

Noite de mistério e luz


Como desejo ficar acordada 

Para contemplar

Docemente o luar 

Até brilhar a aurora!


E como é belo o luar

Nas minhas mãos 

Naturalmente calmo 

Naturalmente misterioso!


Ó lua cheia que enquanto 

Eu adormecia feliz

Me uniste ao luar e à noite 

Entre os mistérios da noite

E a doçura que o luar esconde! 


24 / Ainda de 2024, mais um livro do prolífico autor brasileiro Juergen Heinrich Maar: "150 Sonetos à Moda Antiga", ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2024

A grande arte do soneto tem em Juergen Heinrich Maar um interessado e rigoroso cultor, em que o "à Moda Antiga" do título nada tem de arcaico  (melhor dizendo, obsoleto). Pelo contrário, Maar, admirador confesso de fernando Pessoa e de Florbela Espanca, confere aos poemas uma certa intemporalidade que  tanto os remete para as grandes obras dos autores clássicos, como lhes dá a modernidade que se exige aos autores hodiernos. Desta obra, servida por cuidadoso trabalho editorial, aqui fica a nota e um dos sonetos (e outro, na contracapa).


Paisagem


A curva do caminho inda é o segredo
Apesar de brilhar ao longe o raio
Que incendeia a paisagem, com o medo
Esvaindo-se lentamente num desmaio.

Levam-no nuvens cinzentas bem cedo
Destilando solene a luz de maio
A curva do caminho num enredo
Abrindo de fantástico ensaio.

Todo um novo horizonte liberta
Os d«segredos da curva no caminho,
Que assim as notas cálidas desperta.

Suas sombras banhado de carinho
A que nada resiste nem perdura
E que envolve o segredo e o transfigura.


domingo, 2 de março de 2025

21 / Nos 20 anos da morte do escritor cabo-verdiano Manuel Lopes




Manuel dos Santos Lopes (Mindelo, São Vicente (Cabo Verde), 23 de Dezembro de 1907 — Lisboa, 25 de Janeiro de 2005) foi um ficcionista, poeta e ensaísta e um dos fundadores da moderna literatura cabo-verdiana que, com Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa, foi responsável pela criação da revista "Claridade".

Manuel Lopes escrevia em português, embora utilizasse nas suas obras expressões em crioulo cabo-verdiano. Foi um dos responsáveis por dar a conhecer ao mundo as calamidades, as secas e as mortes em São Vicente e, sobretudo, em Santo Antão.

Emigrou ainda jovem tendo-se a sua família fixado em 1919 em Coimbra (Portugal), onde fez os estudos liceais.

Quatro anos depois, voltou a Cabo Verde como funcionário de uma companhia inglesa.

Em 1936, fundou com Baltasar Lopes a revista "Claridade", de que sairiam nove números.

Em 1944 foi transferido para a ilha do Faial, nos Açores, onde viveu até se fixar em Lisboa, em 1959.

Regressou apenas por duas vezes ao seu arquipélago.

O texto acima (com adaptações) foi retirado da Wikipédia

Ficção

Chuva Braba, 1956/1957

O Galo Que Cantou na Baía (e outros contos cabo-verdianos), 1959

Os Flagelados do Vento Leste, 1959

Poesia

Horas Vagas, 1934

Poema de Quem Ficou, 1949

Folha Caída, 1960

Crioulo e Outros Poemas, 1964

Falucho Ancorado, 1997

Ensaio

Monografia Descritiva Regional, 1932

Paul, 1932

Temas Cabo-verdianos, 1950

Os Meios Pequenos e a Cultura, 1951

Reflexões Sobre a Literatura Caboverdiana, 1959

20 / Allen Ginsberg (Newark, NJ, EUA, 1926 - Manhattan, NY, 1997) escrevendo à máquina

 

19 / Saído em 2024 no Brasil, mais um livro de Juergen Heinrich Maar: "Goethe e a Química", ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2024



Para os mais desatentos, a identidade de Goethe é apenas a de um grande poeta, uma das figuras cimeiras dessa arte, na vertente de língua alemã. Porém, o poeta foi interessado por por outras áreas, mormente a da Química, aqui também com elevado prestígio. Fazendo uso da sua elevada e simultânea erudição de químico e poeta, Juergen Heinrich Maar oferece-nos em "Goethe e a Química - Um ensaio histórico-químico" um historial muito bem documentado da actividade do autor de "Fausto". Trata-se de um dos três livros publicados em 2024 pelo autor, um deles já divulgado no T&T (post 14).


sábado, 1 de março de 2025

18 / Luís Palma Gomes, "Dir-me-ás"


Dir-me-ás


Dir-me-ás

se são ou não 

notícias auspiciosas 

ou pântanos onde o corpo se afunda

ao som triunfante de uma valsa.


Dir-me-ás

se sinto dor ou prazer

ou se alterno entre ambos

como um pêndulo balançando 

cada vez mais lento

sujeito que está ao atrito 

da doença e do amor descasado.


Dir-me-ás...

17 / Mais um interessante texto de Nicolau Saião - carnavalesco, desta feita... e com ilustração do próprio

O Arantes telefonou-me ainda não era meio-dia. Chovia de mansinho. Ele estava alegre, como sempre (vodka "Kamikaze"). "Congemino de que irás logo tu mascarado!", disse-me mostrando saber como iria ser no baile das Saavedras. "Aposto que vais de urso!", atirou gargalhando em stacato. Não lhe disse que sim nem que não. E ele, lampeiro: "Adeus, meu malandro! Daqui a bocado passo aí por casa para que me emprestes o sobretudo que a nena te ofereceu".

Estava nisto quando tocaram à campainha. Claro, era o Avelino. "Tou cá a pensar...", afirmou antes que eu respirasse fundo "Logo no baile das Reboredos... Sou capaz de jurar que vais de guarda-republicano!". Foi direito à garrafeira e, todo lampeiro, abalou-me com o "Queen Margot"! Ainda não se extinguira o estrépito na escada e já me repenicava o telelé. Naturalmente, era o Simões, o gorducho com o seu pigarro enervante. "Olha lá, parceiro do teu parceiro! Já pensei que logo irás de bispo à funçanata das Castro Henriques...", pespegou-me com vivacidade. "É ou não é, meu chapa?" E antes de me deixar reagir já me cravara a promessa firme de 50 euros sem caroço... Despediu-se velozmente e quem vejo aparecer no e-mail do meu portátil como sempre ligado? Evidentemente, o Belisário. "Meu garanhão", li na janela do sinistro aparelhómetro "Já cá se sabe que ao baile das Avintes tu irás de bombeiro. Faz-te de novas...E não te esqueças de me devolver aquela primeira edição que me surripiaste do Fernando Arrabal".

Suspirando, fui até à secretária. Nem tinha tido tempo de ler o correio do dia anterior. Uma carta. Hum, hum... Da fôfa, a Leopoldina. "Matulão, calculo que logo ao baile da Filarmónica não te sustenhas de ir de criada-para-todo-o-serviço. Sempre gostaste de meias pretas, eheh...". E dava-me logo o recado: "Não te esqueças de me levar a tua pulseira de ouro que eu depois devolvo-ta...".

A chuva parara. Olhei pela janela, com certa melancolia, as árvores que, muito quietas, estavam como sempre no enfiamento das ruas onde se cruzavam transeuntes com um ar algo abatido. Sentia-me meio patusco.

Respirei fundo.

Despi-me nas calmas. Pausadamente. Com prazer, com decisão. Pus-me mesmo sem cuecas, fui até à porta da entrada, fechei-a à chave e, voltando para o quarto, atirei-a lá para a gaveta de baixo do armário por uma fenda entreaberta que, depois, cerrei com esmero.

Desatei a rir de mansinho. Num estilo muito meu. Abri o ar condicionado, coloquei-o no quentinho, apanhei um exemplar do Boris Vian e estendi-me confortavelmente na doce cama.

Eles nunca tinham pensado que neste Carnaval eu iria ficar no leito mascarado de nudista...

In “O pincel honesto, contarelos para mortos-vivos”

Pintura de Nicolau Saião