quarta-feira, 24 de setembro de 2025

41 / Luís Palma Gomes, "Ervas secas, quase mortas"


Ervas secas, quase mortas


Vós, que tivestes

todo o verão para florir,

e creio que cumpristes.


Os pássaros e os ratos

amavam-vos

por razões diversas,

mas não menos sinceras

e frutuosas.


Amavam-vos

como quem ama

a mãe,

o pai,

a própria pele.


Agora,

vossas folhas

acastanham lentamente.


Talvez a terra vos chame

em segredo

e para sempre.

Ou talvez não.


Talvez apenas adormeçais

no lume brando do chão,

no melhor dos refúgios

para quem perdeu, por agora,

alguma força.

sábado, 20 de setembro de 2025

40 / Jorge Amado (Itabuna, Brasil, 1912 – Salvador, Brasil, 2001) escrevendo à máquina

39 / Solange Firmino (Brasil), "Enseada de Junho"


Enseada de Junho


Não sei se amo mais o marujo, o vento

ou a maré que traz a desordem da espuma.

O cais inabitado é uma metáfora a decifrar

o silêncio do inverno.


Os barcos velhos ancorados, as velas rotas recolhidas

fazem pensar que só buscavam um porto de abrigo.

Até as aves marinhas alteram seus rumos.

Adio para amanhã mais uma tormenta.


Ao entardecer, percorro a orla da praia.

Espero a lua se acender no mar.

Só os uivos comovidos dos cães

me fazem companhia agora.


Foto Joaquim Saial

terça-feira, 2 de setembro de 2025

37 / Na morte (hoje) do actor índio Graham Greene, por Nicolau Saião


Hoje, logo que abri o aparelhómetro, dei com uma triste notícia: morreu Graham Greene, o actor índio da tribo Oneida que todos nós pudemos apreciar nos filme em que esplendeu a sua grande qualidade de intérprete: “Danças com Lobos” ou, no campo dos melhores policiais cinematográficos, o inesquecível “Coração de Trovão”, a partir de um must de Tony Hillerman, posto na tela pelo consistente Michel Apted no qual para além de Green também actuaram os excelentes Val Kilmer, Sam Shepard e Sheila Tusey, enquadrados por uma equipa bem escolhida.

Graham Greene, que pelo seu povo fora elevado à condição de chefe honorário devido à sua qualidade de grande actor de teatro e cinema mas também pela sua postura de integérrimo representante da sua tribo (Oneida, uma das pertencentes às denominadas Seis Nações) teve antes de enveredar pela arte cénica diversas profissões: carpinteiro, operário do aço e soldador até chegar, pelo estudo depois, a engenheiro civil.

Tive ocasião, durante a minha estadia no Canadá, em Toronto - cidade onde ele vivia - e noutros locais do Ontário, de conversar com diversos oneidas, os quais unanimemente me referiram, a dado passo, o gosto que tinham em ser confrades tribais de Greene, apreciado e respeitado como membro destacado da nação Oneida.

(Os Oneida são um povo indígena do grupo linguístico iroquês, com as suas terras ancestrais em Nova Iorque. Eles são um dos cinco povos originais da Confederação Iroquesa (ou Haudenosaunee), conhecidos como o "Povo da Pedra em Pé". Os Oneida tiveram um papel crucial como aliados dos Estados Unidos durante a Revolução Americana e muitos se dispersaram ao longo do tempo, estabelecendo-se em Wisconsin e Ontário, Canadá, após a perda da sua terra. 

Resta-me referir que o chefe Cavalo Corvo, nome índio tradicional do saudoso actor agora falecido - por causas naturais conforme é referido nas notícias necrológicas, pois não partiu por doença ou acidente - fora nomeado, entre diversos outros galardões durante a sua carreira, para o Oscar de melhor actor coadjuvante pelo seu papel de Chefe Kicking Bird do "Danças com lobos" em que dava réplica ao também excelente Kevin Costner, realizador dessa memorável película posta em cena a partir de um notável romance do norte-americano Michael Blake.

Consternado pela sua partida, curvo-me perante a sua memória.

36 / De Luís Palma Gomes, "Os anjos"


Os anjos


Nada é mais terrível do que um anjo

quando desce branco e silencioso

para mudar de lugar os lírios

que dispuseste com tanto cuidado na jarra da sala.


O belo é um adjectivo revelador

que lhes cai dos olhos para as asas,

escorrendo depois até à ponta dos dedos.


É através desse lugar táctil

que os anjos sentem e nos mudam o destino,

trocando flores como quem escreve

numa linguagem de profecias.


quinta-feira, 28 de agosto de 2025

35 / De Joaquim Saial, "Sopro"


Sopro


Na orla da noite

há um homem que não tem nome

e que, mesmo sem nome,

é feito de som.

Não se apresenta,

não acena,

não espera aplausos.

Abre o estojo como quem profana um relicário,

retira o saxofone

com a lentidão cerimonial de quem pega fogo a um templo

e toca.

Toca como quem regressa a um lugar

que nunca viu,

mas que sempre reconheceu.

Não há rima no que faz.

Não há compasso.

Só uma busca cega,

como quem sopra para dentro da terra

à espera de que algo devolva o grito.

Ouvira Charlie Parker pela primeira vez,

num quarto emprestado,

com o sol a morrer devagar na ombreira.

Daquele dia em diante,

deixou de escutar o mundo da mesma forma.

De John Coltrane aprendeu

que a fé também pode ser dissonância.

Que cada nota é uma escada para o interior

e que o silêncio entre elas

é o lugar onde Deus se senta.

Com Sonny Rollins aprendeu o risco.

O peso do improviso como abismo

e o voo possível mesmo sem asas.

Ornette Coleman ensinou-lhe o corpo da liberdade,

o gesto antes da intenção,

a verdade sem mapa.

De Wayne Shorter veio a sombra,

o contorno do invisível,

a arte de dizer

aquilo que se parte em nós

sem fazer som.

Michael Brecker trouxe-lhe o rigor do abismo,

a física do lamento,

a ciência do espanto.

Mas não era deles que falava

quando tocava.

Não era de ninguém.

O som que dele saía

não era homenagem,

era instinto.

Era fome.

Era o desejo de deixar de ser pele

e ser curva.

De deixar de ser carne

e ser metal.

Falava do saxofone como outros falam da alma.

Como se o instrumento não fosse um objecto,

mas um destino.

Queria dissolver-se na vibração.

Ser corpo oco,

ressonância,

vento atravessado.

Passava os dias a afinar-se com o mundo,

como se esperasse o instante exacto

em que a sua matéria

se fundisse com o latão.

Tocava no meio da rua,

numa praça de pombos e ecos,

com os olhos fechados

e o corpo arqueado sobre a música

como um arbusto sob a chuva.

Às vezes, uma só nota sustentada

abria fendas no ar.

As pessoas paravam,

não para ouvir 

— mas para lembrar.

Ninguém sabia o seu nome.

Nem ele.

E quando enfim desapareceu,

o saxofone ficou encostado a uma parede,

ainda quente,

como se tivesse corpo.

Dizem que, se o chegarmos ao ouvido,

poderemos escutar o mar.

Mas não o mar das gaivotas, o outro.

O que se esconde

no fundo do som.


sábado, 9 de agosto de 2025

34 / De Luís Palma Gomes, "Prognósticos"

 

Prognósticos


Parece que hoje não chove,

parece. 

Quando vai chover 

as vozes são outras 

e chove-me também. 

Por isso, eu sei 

que não vai chover,  

como aqueles galos de plástico

que mudam de cor 

quando isso acontece.


domingo, 29 de junho de 2025

31 / De Luís Palma Gomes, "Pax simulata"

 

Pax simulata


Somos grandes gatos, tu e eu.

Por isso, dormitamos no sofá 

a ouvir a imitação da chuva

que o filtro do aquário faz ressoar na sala. 


Gostamos de estar assim, 

horas e horas, tentando

acalmar a bravura do relógio.


Porque a paz não é bem a paz, 

mas apenas a ausência da guerra.



domingo, 18 de maio de 2025

29 / De António Rosa, "Luís, o que queria trabalhar..."


Luís, o que queria trabalhar...


Luís era um pobre diabo que não tinha onde cair morto, como soe dizer-se.

A fome agora apertava e nem sequer um biscate, um mandado, nada lhe aparecia que lhe pudesse trazer uns pequenos trocos para uma bucha. Embora se envergonhasse já começava a pedir, depois que a polícia correu com ele do parque de estacionamento, mas até as pessoas com cara de caridosas lhe negavam a esmola.

Luís estava mesmo a passar mal. Deambulava por aquela rua abaixo, que vai dar ao antigo parque industrial, sem rumo definido, andando por andar. Passou ao portão de um velho pavilhão onde ouviu gente e máquinas a trabalhar. Veio-lhe à cabeça a resposta que alguém lhe dera ontem, quando pedia esmola: “Vai trabalhar, malandro…”. Será que aquele sujeito tinha razão? 

Luís parou, passou as mãos pelos cabelos desgrenhados, na tentativa de melhorar a má imagem, sacudiu também a poeiras das calças e decidiu-se a bater ao portão. Eis que naquele instante este se entreabriu e surgiu um homem de meia-idade, bem vestido e de telemóvel ao ouvido, que esbracejava, visivelmente irritado e passou por ele sem o ver. Deu três ou quatro passos na calçada e voltou para junto do portão. “Tive de sair, que lá dentro com o barulho das máquinas não te consigo ouvir. Isto está mesmo impossível, não sei o que hei-de fazer. O pessoal está a faltar de uma maneira assustadora. Uma está de férias de parto, dois dos que mais falta me fazem estão doentes, já há uns dias. Outro telefonou-me ontem à noite a dizer que hoje não poderia vir porque lhe morreu o sogro. Até o rapaz dos recados hoje faltou. Não tenho ninguém para fazer a entrega das encomendas. Isto está um caos completo. E logo numa altura destas em que não posso fechar, que era a vontade que eu tinha…” E continuava a conversa gesticulando, dando pontapés em pedras da calçada, que não tinham culpa nenhuma, à beira de um ataque de nervos.

Luís apercebeu-se que aquele era o patrão. Tinha de lhe pedir emprego, mas era óbvio que aquele não era o momento apropriado.

Entretanto o homem, quando se voltou para entrar, reparou naquele rapaz andrajoso ali encostado ao portão. “Quem é você e o que quer daqui?” 

Luís, um pouco envergonhado respondeu: “Sou o Luís e vinha pedir emprego pois preciso muito de trabalhar, em qualquer trabalho que seja, pois estou a passar fome. Agradecia-lhe muito.”

Diz o patrão: “Não é que eu não esteja a necessitar de colaboradores, mas agora não tenho tempo para o atender.”

“Não faz mal, eu posso ficar aqui à espera”, respondeu o Luís enquanto se sentava no chão, encostado ao portão de ferro, que estremeceu quando o patrão o fechou.

Já no gabinete, sentado à secretária, passava a mão pelo pouco cabelo num gesto de preocupação. Como é que vou entregar estas encomendas que têm que chegar aos clientes impreterivelmente hoje? Nem sequer posso sair daqui, com a falta do encarregado.

Entretanto, pela janela entreaberta ouvia-se da rua uma multidão que gritava: “Deixem trabalhar o Luís”. Iluminou-se. Correu ao portão a chamá-lo e disse-lhe: “Você vai entregar isto.”


sábado, 26 de abril de 2025

27 / Joaquim Saial, "Humilhação"


Humilhação


Aquele leão era o mais destrambelhado e mau caçador do bando. Quando ao tentar atacar um elefante foi agarrado pela tromba deste e projectado contra o grande imbondeiro, o que mais o vexou não foi esse facto, mas sim ouvir toda uma alcateia de oito hienas a rir-se às gargalhadas da sua desgraça.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

26 / Luís Palma Gomes, a partir de um verso de "Tabacaria", de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa

 

Há tantos que não pode haver tantos

porque se houvesse tantos, nem um havia.


E mesmo que houvesse um,

como seria ele singular e autêntico

se os outros eram tantos?


Não, não pode haver tantos

sem que rompesse de imediato

um escândalo e uma catástrofe,

por haver apenas um entre tantos.


e no final esse tal seria afinal nenhum,

para que continuasse a haver tantos,

apesar de não haver sequer um.


25 / Carlota de Barros (Cabo Verde), "Noite de lua cheia"


Noite de lua cheia                 


Tenho gravado nos meus olhos

O luar que me extasiou

Numa noite 

Em que a lua cheia 

Me seguiu

Calma e segura 

Pelos caminhos por onde ia.


Ó noite de lua cheia 

Tão calma ... tão bela...

Que ficaste gravada 

Nos meus olhos

Até adormecer.


E como é belo o luar 

Que tão naturalmente        

Nos fica nas mãos e na alma!


Ó doce lua cheia 

Tão calma tão bela

Que ficaste nos meus olhos 

Para sempre.

Que mistérios escondes 

Noite de lua cheia?

Ó noite de luar  

Noite de doçura  

Noite de mistério e luz


Como desejo ficar acordada 

Para contemplar

Docemente o luar 

Até brilhar a aurora!


E como é belo o luar

Nas minhas mãos 

Naturalmente calmo 

Naturalmente misterioso!


Ó lua cheia que enquanto 

Eu adormecia feliz

Me uniste ao luar e à noite 

Entre os mistérios da noite

E a doçura que o luar esconde! 


24 / Ainda de 2024, mais um livro do prolífico autor brasileiro Juergen Heinrich Maar: "150 Sonetos à Moda Antiga", ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2024

A grande arte do soneto tem em Juergen Heinrich Maar um interessado e rigoroso cultor, em que o "à Moda Antiga" do título nada tem de arcaico  (melhor dizendo, obsoleto). Pelo contrário, Maar, admirador confesso de fernando Pessoa e de Florbela Espanca, confere aos poemas uma certa intemporalidade que  tanto os remete para as grandes obras dos autores clássicos, como lhes dá a modernidade que se exige aos autores hodiernos. Desta obra, servida por cuidadoso trabalho editorial, aqui fica a nota e um dos sonetos (e outro, na contracapa).


Paisagem


A curva do caminho inda é o segredo
Apesar de brilhar ao longe o raio
Que incendeia a paisagem, com o medo
Esvaindo-se lentamente num desmaio.

Levam-no nuvens cinzentas bem cedo
Destilando solene a luz de maio
A curva do caminho num enredo
Abrindo de fantástico ensaio.

Todo um novo horizonte liberta
Os d«segredos da curva no caminho,
Que assim as notas cálidas desperta.

Suas sombras banhado de carinho
A que nada resiste nem perdura
E que envolve o segredo e o transfigura.


domingo, 2 de março de 2025

21 / Nos 20 anos da morte do escritor cabo-verdiano Manuel Lopes




Manuel dos Santos Lopes (Mindelo, São Vicente (Cabo Verde), 23 de Dezembro de 1907 — Lisboa, 25 de Janeiro de 2005) foi um ficcionista, poeta e ensaísta e um dos fundadores da moderna literatura cabo-verdiana que, com Baltasar Lopes da Silva e Jorge Barbosa, foi responsável pela criação da revista "Claridade".

Manuel Lopes escrevia em português, embora utilizasse nas suas obras expressões em crioulo cabo-verdiano. Foi um dos responsáveis por dar a conhecer ao mundo as calamidades, as secas e as mortes em São Vicente e, sobretudo, em Santo Antão.

Emigrou ainda jovem tendo-se a sua família fixado em 1919 em Coimbra (Portugal), onde fez os estudos liceais.

Quatro anos depois, voltou a Cabo Verde como funcionário de uma companhia inglesa.

Em 1936, fundou com Baltasar Lopes a revista "Claridade", de que sairiam nove números.

Em 1944 foi transferido para a ilha do Faial, nos Açores, onde viveu até se fixar em Lisboa, em 1959.

Regressou apenas por duas vezes ao seu arquipélago.

O texto acima (com adaptações) foi retirado da Wikipédia

Ficção

Chuva Braba, 1956/1957

O Galo Que Cantou na Baía (e outros contos cabo-verdianos), 1959

Os Flagelados do Vento Leste, 1959

Poesia

Horas Vagas, 1934

Poema de Quem Ficou, 1949

Folha Caída, 1960

Crioulo e Outros Poemas, 1964

Falucho Ancorado, 1997

Ensaio

Monografia Descritiva Regional, 1932

Paul, 1932

Temas Cabo-verdianos, 1950

Os Meios Pequenos e a Cultura, 1951

Reflexões Sobre a Literatura Caboverdiana, 1959

20 / Allen Ginsberg (Newark, NJ, EUA, 1926 - Manhattan, NY, 1997) escrevendo à máquina

 

19 / Saído em 2024 no Brasil, mais um livro de Juergen Heinrich Maar: "Goethe e a Química", ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2024



Para os mais desatentos, a identidade de Goethe é apenas a de um grande poeta, uma das figuras cimeiras dessa arte, na vertente de língua alemã. Porém, o poeta foi interessado por por outras áreas, mormente a da Química, aqui também com elevado prestígio. Fazendo uso da sua elevada e simultânea erudição de químico e poeta, Juergen Heinrich Maar oferece-nos em "Goethe e a Química - Um ensaio histórico-químico" um historial muito bem documentado da actividade do autor de "Fausto". Trata-se de um dos três livros publicados em 2024 pelo autor, um deles já divulgado no T&T (post 14).


sábado, 1 de março de 2025

18 / Luís Palma Gomes, "Dir-me-ás"


Dir-me-ás


Dir-me-ás

se são ou não 

notícias auspiciosas 

ou pântanos onde o corpo se afunda

ao som triunfante de uma valsa.


Dir-me-ás

se sinto dor ou prazer

ou se alterno entre ambos

como um pêndulo balançando 

cada vez mais lento

sujeito que está ao atrito 

da doença e do amor descasado.


Dir-me-ás...

17 / Mais um interessante texto de Nicolau Saião - carnavalesco, desta feita... e com ilustração do próprio

O Arantes telefonou-me ainda não era meio-dia. Chovia de mansinho. Ele estava alegre, como sempre (vodka "Kamikaze"). "Congemino de que irás logo tu mascarado!", disse-me mostrando saber como iria ser no baile das Saavedras. "Aposto que vais de urso!", atirou gargalhando em stacato. Não lhe disse que sim nem que não. E ele, lampeiro: "Adeus, meu malandro! Daqui a bocado passo aí por casa para que me emprestes o sobretudo que a nena te ofereceu".

Estava nisto quando tocaram à campainha. Claro, era o Avelino. "Tou cá a pensar...", afirmou antes que eu respirasse fundo "Logo no baile das Reboredos... Sou capaz de jurar que vais de guarda-republicano!". Foi direito à garrafeira e, todo lampeiro, abalou-me com o "Queen Margot"! Ainda não se extinguira o estrépito na escada e já me repenicava o telelé. Naturalmente, era o Simões, o gorducho com o seu pigarro enervante. "Olha lá, parceiro do teu parceiro! Já pensei que logo irás de bispo à funçanata das Castro Henriques...", pespegou-me com vivacidade. "É ou não é, meu chapa?" E antes de me deixar reagir já me cravara a promessa firme de 50 euros sem caroço... Despediu-se velozmente e quem vejo aparecer no e-mail do meu portátil como sempre ligado? Evidentemente, o Belisário. "Meu garanhão", li na janela do sinistro aparelhómetro "Já cá se sabe que ao baile das Avintes tu irás de bombeiro. Faz-te de novas...E não te esqueças de me devolver aquela primeira edição que me surripiaste do Fernando Arrabal".

Suspirando, fui até à secretária. Nem tinha tido tempo de ler o correio do dia anterior. Uma carta. Hum, hum... Da fôfa, a Leopoldina. "Matulão, calculo que logo ao baile da Filarmónica não te sustenhas de ir de criada-para-todo-o-serviço. Sempre gostaste de meias pretas, eheh...". E dava-me logo o recado: "Não te esqueças de me levar a tua pulseira de ouro que eu depois devolvo-ta...".

A chuva parara. Olhei pela janela, com certa melancolia, as árvores que, muito quietas, estavam como sempre no enfiamento das ruas onde se cruzavam transeuntes com um ar algo abatido. Sentia-me meio patusco.

Respirei fundo.

Despi-me nas calmas. Pausadamente. Com prazer, com decisão. Pus-me mesmo sem cuecas, fui até à porta da entrada, fechei-a à chave e, voltando para o quarto, atirei-a lá para a gaveta de baixo do armário por uma fenda entreaberta que, depois, cerrei com esmero.

Desatei a rir de mansinho. Num estilo muito meu. Abri o ar condicionado, coloquei-o no quentinho, apanhei um exemplar do Boris Vian e estendi-me confortavelmente na doce cama.

Eles nunca tinham pensado que neste Carnaval eu iria ficar no leito mascarado de nudista...

In “O pincel honesto, contarelos para mortos-vivos”

Pintura de Nicolau Saião

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

16 / Nicolau Saião, "O animal"


O animal 


É só uma questão de começar: o animal começa

o rosto erguido, o olhar cego de terra

- que a sua santidade é a mais oculta de todas

inevitavelmente mudando e recompondo

as alavancas, o absurdo respirar das máquinas

na treva.

O animal sobe, pois

com o ombro reluzindo na madrugada

imenso, minúsculo

mais pequeno que o tempo impiedoso

cheirando a tojo e canela, a voz

inenarrável dos séculos. Talvez os nossos pais

alcancem ver a trémula

luz da lâmpada ao longe, talvez

tudo seja de repente claro e sóbrio

- arquitectura, objectos perpétuos, um sinal

de apaziguante secura, a fresca

lembrança da larga dependência onde guardavam

os frutos e a escuridão. Talvez

para eles haja choros e piedade, a semente

do silêncio.


E contudo o animal aspira o leve cheiro

que o circunda

a chama impenetrável de muitos anos presos

à sua recordação

O animal percorre agora os quartos e as salas

o perfil doloroso das montanhas

o animal vai existindo no mundo

é o torso do mundo

o animal penetra no elemento novo

fala com as palavras obscuras que se escondem

numa gaveta duma cidade destruída.

O animal tem dentro de si vestígios

de turva dissipação. O animal

sente o vento nas barbas, contenta-se

com um logro, um afago, um charco de sangue.

O animal arqueja, enquanto

a música se propaga entre os muros e as estátuas.


Talvez seja, quem sabe, uma aparência

verdadeiramente santa e tenebrosa. Por enquanto

a sua memória cobre-se de cicatrizes

parte copos, perde-se na contemplação

da alegria, como se

o animal existisse. É o calor

o êxtase de reconhecer, visível e subtil

de si mesmo. O animal


passa de um lugar a outro, simplesmente

e recompõe tenaz e sabiamente

a sua imagem destroçada. 


"Elefante", Salvador Dali

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

15 / Do poeta José Vultos Sequeira, chegou ao T&T pela mão do eng. António Jacinto Marques o livro "Onde Nasce a Água" (2019)

103 páginas de excelente poesia que, apesar de já ter sido dada à estampa há um lustro, merece lugar de honra no T&T. Trata-se de um conjunto de memórias de um tempo perdido, do Alentejo profundo, de onde o autor veio (Mora). Os animais, as gentes, o trabalho duro, o pão, os sítios da grande província dupla do Sul, tudo está plasmado em registo fiel e de leitura comovente.

Da badana da capa do livro: José Vultos Sequeira nasceu em Mora, em 1944. Autodidacta, publicou os seus primeiros versos nos anos 70  na revista "Eva" e no jornal "O Diário", numa página de poesia e também de temática infanto-juvenil, da responsabilidade de Mário Castrim e Alice Vieira. Nos anos 80 publicou  livros para crianças e poesia, premiados pela Associação Portuguesa de Escritores, Fundação Calouste Gulbenkian e Associação 25 de Abril. Tem mais de uma dezena de livros publicados. Dado que na badana da contracapa se indica que não se podem fazer reproduções da obra e não conhecemos o autor, ficará para outra ocasião a passagem no T&T de alguns dos seus interessantes poemas.

Título: "Onde Nasce a Água"

Colecção: palavras escritas

Revisão do texto: Ana Mendo

Design e paginação: Augusto Nunes

Impressão e acabamentos: Oficinas Gráficas do Banco de Portugal

Patrocínio: Grupo Desportivo e Cultural do Banco de Portugal

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025

14 / Saído recentemente no Brasil, T&T tem o gosto de revelar "Conexões", de Juergen Heinrich Maar, ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2024




Já divulgado no T&T, o autor brasileiro e antigo professor universitário Juergen Heinrich Maar lançou novo livro em que a Química é sujeito. Conforme ele refere no prefácio, "Conexões" é um conjunto de 20 ensaios que "apresentam ao leitor episódios, geralmente pouco conhecidos, da história da Química e de áreas afins, devidamente inseridos num contexto histórico mais amplo" e nos quais "encontraremos conexões de algum tipo: conexões com outros episódios da história da Química, conexões do facto relatado com outras épocas, com outros lugares, com factos históricos aparentemente desligados do tema em discussão, conexões com aspectos ligados à literatura ou às artes".
Embora noutra perspectiva, esta obra de Maar, também poeta publicado, assemelha-se em certa medida à do matemático português Bento de Jesus Caraça. Ambos tornam ciências afins habitualmente tomadas pelo público como "difíceis" em agradabilíssima e proveitosa leitura, acessível a todos, mesmo àqueles que não se movem nas áreas referidas. Escrito num estilo coloquial, este livro é um exemplo maior de divulgação geral da ciência, ainda assim pleno de erudição.

Eis o sumário deste repositória de episódios químicos:

01 - Malthus, o senhor von Bleichroden e Sir William Crookes
02 - Do trapiche de Cumuruxatiba à Ópera de Viena e um sucesso de Hitchcock
03 - Ersatz
04 - Da cozinha ao laboratório e vice-versa
05 - Águas curativas - Lugares, Épocas, Curas?
06 - Ilhas e aves, belas cores e o guano alemão
07 - Ar de fogo, ar vital, oxigénio, passando pelo espírito nitro-aéreo
08 - A reacção mais importante - da Alquimia à Química
09 - Amargos aromáticos, gotas amargas
10 - As baleias do Desterro - As baleias da Química
11 - Quatro singelos materiais
12 - A cervejaria abandonada - Uma história sobre a Penicilina
13 - A Química e as florestas
14 - A ciência vai ao cinema
15 - O corante e o teatro
16 - Sementes, mudas e biopirataria ou as plantas também migram
17 - Flores para o coração
18 - Prenúncios de globalização no século XVI
19 - Vidros e espelhos, antigos e eternos
20 - Iquique, Antofagasta, Liverpool, Hamburgo ou o Ouro Branco dos Altiplanos

 
 

sábado, 25 de janeiro de 2025

13 / Joaquim Saial, "Eugénio"


Eugénio


Ele tinha-se em grande conta. Quando lhe perguntavam o nome, respondia levantando ligeiramente o queixo e fazendo uma suave pausa entre “Eu” e “génio”.


12 / Carlota de Barros (Cabo Verde), "A rosa amarela"


A rosa amarela


A rosa amarela

Coroando-se de alegria

Nas manhãs de sol

Abre-se ao seu ardor


Um jovem caminhava

Solitarário ardendo de amor

Ao encontro da manhã.

De repente vê a rosa

Bela... aberta ao sol.

Fulgor de florir


Debruça-se e colhe-a.

Apelo da rosa amarela

Fremente de doçura

O jovem segura a rosa 

Mãos inocentes e alegres


E segue o seu caminho

A rosa apaixonadamente sua

E o jovem cantava

Acariciando a rosa

No ardor da manhã 


Seu coração arde  

A manhã brilha

À luz do sol

A rosa a luzir nas mãos do jovem.


Que direi mais da doçura

Do fulgor da rosa amarela

Antes que o jovem

Dela faça música?


Jovem e rosa descem 

Lentamente a colina

Falo agora de carícia

Ou só de memória de beijos?


Memória de beijos

O jovem desce a colina

Com sua rosa amarela.

Vai ao encontro do amor


Falo ainda da rosa amarela

Do jovem  de beijos  de ardor

De alguém que aguardava 

Apaixonadamente uma carícia

De seu amor sem saber 

Da doçura da rosa amarela 


Falo da memória de beijos

Da carícia da rosa amarela

Do ardor do jovem feliz

Da rosa amarela   agora 

Apaixonadamente música

Nas mãos de quem 

Aguardava o seu amor...