quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

16 / Nicolau Saião, "O animal"


O animal 


É só uma questão de começar: o animal começa

o rosto erguido, o olhar cego de terra

- que a sua santidade é a mais oculta de todas

inevitavelmente mudando e recompondo

as alavancas, o absurdo respirar das máquinas

na treva.

O animal sobe, pois

com o ombro reluzindo na madrugada

imenso, minúsculo

mais pequeno que o tempo impiedoso

cheirando a tojo e canela, a voz

inenarrável dos séculos. Talvez os nossos pais

alcancem ver a trémula

luz da lâmpada ao longe, talvez

tudo seja de repente claro e sóbrio

- arquitectura, objectos perpétuos, um sinal

de apaziguante secura, a fresca

lembrança da larga dependência onde guardavam

os frutos e a escuridão. Talvez

para eles haja choros e piedade, a semente

do silêncio.


E contudo o animal aspira o leve cheiro

que o circunda

a chama impenetrável de muitos anos presos

à sua recordação

O animal percorre agora os quartos e as salas

o perfil doloroso das montanhas

o animal vai existindo no mundo

é o torso do mundo

o animal penetra no elemento novo

fala com as palavras obscuras que se escondem

numa gaveta duma cidade destruída.

O animal tem dentro de si vestígios

de turva dissipação. O animal

sente o vento nas barbas, contenta-se

com um logro, um afago, um charco de sangue.

O animal arqueja, enquanto

a música se propaga entre os muros e as estátuas.


Talvez seja, quem sabe, uma aparência

verdadeiramente santa e tenebrosa. Por enquanto

a sua memória cobre-se de cicatrizes

parte copos, perde-se na contemplação

da alegria, como se

o animal existisse. É o calor

o êxtase de reconhecer, visível e subtil

de si mesmo. O animal


passa de um lugar a outro, simplesmente

e recompõe tenaz e sabiamente

a sua imagem destroçada. 


"Elefante", Salvador Dali

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