quinta-feira, 28 de agosto de 2025

35 / De Joaquim Saial, "Sopro"


Sopro


Na orla da noite

há um homem que não tem nome

e que, mesmo sem nome,

é feito de som.

Não se apresenta,

não acena,

não espera aplausos.

Abre o estojo como quem profana um relicário,

retira o saxofone

com a lentidão cerimonial de quem pega fogo a um templo

e toca.

Toca como quem regressa a um lugar

que nunca viu,

mas que sempre reconheceu.

Não há rima no que faz.

Não há compasso.

Só uma busca cega,

como quem sopra para dentro da terra

à espera de que algo devolva o grito.

Ouvira Charlie Parker pela primeira vez,

num quarto emprestado,

com o sol a morrer devagar na ombreira.

Daquele dia em diante,

deixou de escutar o mundo da mesma forma.

De John Coltrane aprendeu

que a fé também pode ser dissonância.

Que cada nota é uma escada para o interior

e que o silêncio entre elas

é o lugar onde Deus se senta.

Com Sonny Rollins aprendeu o risco.

O peso do improviso como abismo

e o voo possível mesmo sem asas.

Ornette Coleman ensinou-lhe o corpo da liberdade,

o gesto antes da intenção,

a verdade sem mapa.

De Wayne Shorter veio a sombra,

o contorno do invisível,

a arte de dizer

aquilo que se parte em nós

sem fazer som.

Michael Brecker trouxe-lhe o rigor do abismo,

a física do lamento,

a ciência do espanto.

Mas não era deles que falava

quando tocava.

Não era de ninguém.

O som que dele saía

não era homenagem,

era instinto.

Era fome.

Era o desejo de deixar de ser pele

e ser curva.

De deixar de ser carne

e ser metal.

Falava do saxofone como outros falam da alma.

Como se o instrumento não fosse um objecto,

mas um destino.

Queria dissolver-se na vibração.

Ser corpo oco,

ressonância,

vento atravessado.

Passava os dias a afinar-se com o mundo,

como se esperasse o instante exacto

em que a sua matéria

se fundisse com o latão.

Tocava no meio da rua,

numa praça de pombos e ecos,

com os olhos fechados

e o corpo arqueado sobre a música

como um arbusto sob a chuva.

Às vezes, uma só nota sustentada

abria fendas no ar.

As pessoas paravam,

não para ouvir 

— mas para lembrar.

Ninguém sabia o seu nome.

Nem ele.

E quando enfim desapareceu,

o saxofone ficou encostado a uma parede,

ainda quente,

como se tivesse corpo.

Dizem que, se o chegarmos ao ouvido,

poderemos escutar o mar.

Mas não o mar das gaivotas, o outro.

O que se esconde

no fundo do som.


1 comentário:

  1. Antológico, a meu ver. Didáctico até na medida em que um poema pode sê-lo. O poema procura referências para expressar a dimensão artística do saxofonista, mas não aguenta a pressão das semelhanças, das influências. Então, o instrumentista sobe na escala existencial até à individualidade que o jazz tão bem suporta e demonstra. É difícil escolher um verso. São todos bons. Ainda assim arrisco:"
    Que cada nota é uma escada para dentro"

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