Sopro
Na orla da noite
há um homem que não tem nome
e que, mesmo sem nome,
é feito de som.
Não se apresenta,
não acena,
não espera aplausos.
Abre o estojo como quem profana um relicário,
retira o saxofone
com a lentidão cerimonial de quem pega fogo a um templo
e toca.
Toca como quem regressa a um lugar
que nunca viu,
mas que sempre reconheceu.
Não há rima no que faz.
Não há compasso.
Só uma busca cega,
como quem sopra para dentro da terra
à espera de que algo devolva o grito.
Ouvira Charlie Parker pela primeira vez,
num quarto emprestado,
com o sol a morrer devagar na ombreira.
Daquele dia em diante,
deixou de escutar o mundo da mesma forma.
De John Coltrane aprendeu
que a fé também pode ser dissonância.
Que cada nota é uma escada para o interior
e que o silêncio entre elas
é o lugar onde Deus se senta.
Com Sonny Rollins aprendeu o risco.
O peso do improviso como abismo
e o voo possível mesmo sem asas.
Ornette Coleman ensinou-lhe o corpo da liberdade,
o gesto antes da intenção,
a verdade sem mapa.
De Wayne Shorter veio a sombra,
o contorno do invisível,
a arte de dizer
aquilo que se parte em nós
sem fazer som.
Michael Brecker trouxe-lhe o rigor do abismo,
a física do lamento,
a ciência do espanto.
Mas não era deles que falava
quando tocava.
Não era de ninguém.
O som que dele saía
não era homenagem,
era instinto.
Era fome.
Era o desejo de deixar de ser pele
e ser curva.
De deixar de ser carne
e ser metal.
Falava do saxofone como outros falam da alma.
Como se o instrumento não fosse um objecto,
mas um destino.
Queria dissolver-se na vibração.
Ser corpo oco,
ressonância,
vento atravessado.
Passava os dias a afinar-se com o mundo,
como se esperasse o instante exacto
em que a sua matéria
se fundisse com o latão.
Tocava no meio da rua,
numa praça de pombos e ecos,
com os olhos fechados
e o corpo arqueado sobre a música
como um arbusto sob a chuva.
Às vezes, uma só nota sustentada
abria fendas no ar.
As pessoas paravam,
não para ouvir
— mas para lembrar.
Ninguém sabia o seu nome.
Nem ele.
E quando enfim desapareceu,
o saxofone ficou encostado a uma parede,
ainda quente,
como se tivesse corpo.
Dizem que, se o chegarmos ao ouvido,
poderemos escutar o mar.
Mas não o mar das gaivotas, o outro.
O que se esconde
no fundo do som.
Antológico, a meu ver. Didáctico até na medida em que um poema pode sê-lo. O poema procura referências para expressar a dimensão artística do saxofonista, mas não aguenta a pressão das semelhanças, das influências. Então, o instrumentista sobe na escala existencial até à individualidade que o jazz tão bem suporta e demonstra. É difícil escolher um verso. São todos bons. Ainda assim arrisco:"
ResponderEliminarQue cada nota é uma escada para dentro"