Eugénio
Ele tinha-se em grande conta. Quando lhe perguntavam o nome, respondia levantando ligeiramente o queixo e fazendo uma suave pausa entre “Eu” e “génio”.
Eugénio
Ele tinha-se em grande conta. Quando lhe perguntavam o nome, respondia levantando ligeiramente o queixo e fazendo uma suave pausa entre “Eu” e “génio”.
A rosa amarela
A rosa amarela
Coroando-se de alegria
Nas manhãs de sol
Abre-se ao seu ardor
Um jovem caminhava
Solitarário ardendo de amor
Ao encontro da manhã.
De repente vê a rosa
Bela... aberta ao sol.
Fulgor de florir
Debruça-se e colhe-a.
Apelo da rosa amarela
Fremente de doçura
O jovem segura a rosa
Mãos inocentes e alegres
E segue o seu caminho
A rosa apaixonadamente sua
E o jovem cantava
Acariciando a rosa
No ardor da manhã
Seu coração arde
A manhã brilha
À luz do sol
A rosa a luzir nas mãos do jovem.
Que direi mais da doçura
Do fulgor da rosa amarela
Antes que o jovem
Dela faça música?
Jovem e rosa descem
Lentamente a colina
Falo agora de carícia
Ou só de memória de beijos?
Memória de beijos
O jovem desce a colina
Com sua rosa amarela.
Vai ao encontro do amor
Falo ainda da rosa amarela
Do jovem de beijos de ardor
De alguém que aguardava
Apaixonadamente uma carícia
De seu amor sem saber
Da doçura da rosa amarela
Falo da memória de beijos
Da carícia da rosa amarela
Do ardor do jovem feliz
Da rosa amarela agora
Apaixonadamente música
Nas mãos de quem
Aguardava o seu amor...
Indecifrável
Eu me repito.
Colo post-it por aí
para não esquecer datas.
Atravesso a idade já gasta
comprando um espelho novo.
Vejo poesia em tudo,
procurando o traço ressonante.
Sou transparente,
mas ninguém nada sabe
sobre mim.
E sempre me repito.
Poema
Não eram vulgares as mãos de meu Pai.
Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada
E quando pela noite o vento me fazia
tremer
algo me entrava pelos olhos e era
uma espécie de mapa
e eu lembrava-me esforçando-me contraindo
a cara
se era de facto uma luz o que se via
rés-vés ao telhado muito perto
do grande portão de pedra em ruínas.
Naqueles tempos morávamos no campo
Muitos anos mais tarde visitei a casa
com dois filhos e vários garotos vizinhos
numa tarde ao fim dum passeio pelas matas
dos arredores. Ao canto da cozinha
estava um banco velho e a madeira
ganhara uma cor acinzentada devido
ao tempo. Disse-me depois
- enquanto comíamos pão com azeitonas -
o dono dessa quinta alucinante
no páteo da outra moradia da herdade
que durante trinta e cinco anos
não morara ali ninguém. Éramos pois
nós os fantasmas daquele lugar.
Era no Inverno e as palavras repousavam
e de vez em quando ouvia-se um ruído
como de turbilhão
- certo dia um pássaro morreu junto à
porta da entrada, onde havia
uma planta como de antigas eras -
e algum tempo depois tive de partir e olhar
o universo de tudo de isto e daquilo
O oceano e as vozes recriavam-se algures.
Acabo de ser presenteado com um livro de Química destinado ao ensino médio, não um livro didáctico, muito menos um livro de texto, mas um livro que quer mostrar de modo atraente as "maravilhas da Química" (não é o título do livro). A inesperada doação ressuscitou na memória (daquela parte da memória já considerada como 'inútil') uma fieira de textos de química destinados à faixa etária que começa, mas vai além do ensino médio. É bastante sugestivo o estabelecimento de comparações, e, atrevo-me a dizê-lo, de uma geralmente não vista linearidade na evolução desses acúmulos de conteúdos.
Fui aluno, estudante e professor de Química. Aluno no final da década dde 1950, estudante na década de 1960, professor desde a década de 1970 e historiador da Química desde a década de 1990. Quando fui aluno de colégio, o ensino superior ainda ostentava suas cátedras vitalícias, cujos poderosos tritulares na maioria das vezes indicavam do rolde seus assistentes os seus sucessores. Quando fui estudante, o ensino superior já vinha passando por sucessivas mudanças, algumas para o bem, outras eram antes prejudiciais. Agora, aposentado e independente, perco-me ao pensar no cipoal [dificuldade] de todos esses papéis, normas, relatórios, propostas, minutas... falta ainda o necessário distanciamento cronológico para uma avaliação (mais ou menos) isenta. Mas já se pode perceber que crescentemente a fiorma passou a ser mais importante que o conteúdo.
Mas estou me distanciando do assunto evocado pelo presente em forma de livro. De modo algum eu tinha em mente uma discussão ou tratado sobre livros didácticos de Química, seria pretensioso da minha parte, já não sou entendido no assunto. Não sou entendido, mas tenho opinião, e principalmente décadas de experiência. E pretendia tão somente registar (longe de mim avaliar) como eram esses livros em cada época que vivenciei: livros texto e outras obras didáticas,manuais e roteiros de experiências, alguma literatura para "despertar o interesse" pela ciência (não levando em conta, nessa tareefa inútil, o que cada um realmente queria, mais ou menos como no "meninas na ciência" de hoje).
Lima de Freitas
Há um verde um amarelo um branco
que crescem sobre o Mundo. É a matéria
de aldeias e mares o azulejo
de castelos e casebres o perfil do Homem.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem és
Há um azul um negro um violeta
para que seja íntima a nossa recordação
um braço de mulher um camponês olhando
o rosto obscuro e simples duma criança.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem foste
Há um rôxo e um vermelho há um cinzento
para que as coisas vulgares se transfigurem
para que numa sala a norte de todo o silêncio
a dupla substância perenemente brilhe.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem eras
Dir-te-ei das cores a natureza clara
dir-te-ei do tempo o número e o horizonte
e das raças extintas a floresta e o nome
e dos objectos a sua real dimensão
Porque sabes que o fogo é semelhante ao vento
e tudo em nós encontra a sua forma nova
- um pássaro e um jardim uma mesa uma rua
os vestígios duns passos num caminho secreto.
Diz-me como pintas dir-te-ei talvez
que nada se perdeu nada se perderá
daquilo que dissemos daquilo que fizemos
com os traços e as cores da nossa mão queimada.
Diz-me como pintas dir-te-ei
o que as cores calam e cantam.
![]() |
Lima de Freitas, serigrafia, 1964 |
Com 60 páginas recheadas de excelente poesia, saiu no passado mês de Dezembro, em edição de autor, mais um livro de Luís Palma Gomes, "Cálculo das impossibilidades". A capa e a composição são de Beatriz Rações, a ilustração de Ricardo Andrade e a fotografia de Filipe Silva. A obra divide-se em quatro livros, nomeados como "Entristecer", "Transformar", "Desejar" e "Existir". Do primeiro, um poema:
Um ato isolado
Nuno Júdice, in memoriam
Às vezes tenho a sensação que só o poeta é feliz,
e por poucos segundos apenas.
Constrói uma casa com o vapor do duche,
senta-se depois confortável lá dentro
ou deita-se de barriga para cima
a contemplar o teto a passar.
Até que alguém - que não sabe ao que vem -
abre a porta e deixa entrar o vento da multidão.
Talvez poucos saibam, mas a poesia é um T0
num subúrbio discreto (para não lhe chamar outra coisa pior).
E torna-se insuportável com muita gente lá dentro.
É pena ter que dizê-lo, logo num dia tão bonito,
que a poesia é insocial.
O livro encontra-se à venda na Livraria Poesia Incompleta, Rua de São Ciro, 26 Lisboa (à Lapa, perto do Jardim da Estrela).
Despertar
É preciso transgredir a distração da flor em gestação,
tocá-la infinitamente,
sorver-lhe o perfume,
soprar a gota de orvalho pousada em cada cor,
inventar um arco-íris
pelas arestas do vento,
abrir caminhos para a primavera.
A sombra se faz luz,
o inverno se desfolha.
Como se existisse um tempo das estações,
a primavera dá sinais,
despida das névoas,
como se fosse a primeira vez.
![]() |
Foto Joaquim Saial |
Sebo
Da alameda
antiga,
esquálida,
sai galeria
escadaria
para livros raros,
disseminando letras
entre bueiros.
Leitores
viajam.
Trazem,
de cada poço,
vida nova.
Silêncio!
Pessoa quer dormir
Encontrei na página de um
Livro de Poesias de Pessoa
A folha cor de vinho de recortes finíssimos
Que caíra a meus pés submissa e linda
Naquela tarde feliz de Outono
Doce folha que de novo me revelaste
O poema de Pessoa que me
Entrará na alma tão subtilmente!
[...]
“Cessa o teu canto!
Cessa, que enquanto
O ouvi ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós”
[...]
Que canto seria este, Pessoa
Melodia que não havia
E se a lembras te faz chorar?
Essa voz, Pessoa
Encantamento
Silêncio que há a seguir
Ao canto
Alheio a ti
E a quem canta?
Ah o encantamento
Do canto que vem
A seguir a outro canto
Quem o cantou?
Quem te fez ouvir
Para além
Do que é o sentido
Que voz tem?
Vozes com sentidos opostos!
Ah! Minha folha cor de vinho
Talvez essa voz te tenha seguido
Até o Livro de Poesias
Nesta terra por onde
A alma de Pessoa divaga
Sem saberes que o fazias
Será que também provocaste em mim
Esse encantamento do canto
Que vem a seguir a outro?
Estou a ouvir esse canto
Para além do sentido
Que a voz tem!
Mas quem a teria cantado?
Quem teria provocado em Pessoa
Esse encantamento
Que a mim também me encanta?
Porém Pessoa queria
O silêncio para dormir
E eu desejo tanto o silêncio
Para descansar!
Cessa teu canto!
Cessa!
Vem minha folha
Marca este poema de Pessoa
Que hoje reencontrei!
Um dia quero ouvir de novo
Esse canto que vem a seguir
A outro canto e encanta
Agora, silêncio!
Pessoa quer dormir
E eu desejo tanto descansar...