sábado, 25 de janeiro de 2025

13 / Joaquim Saial, "Eugénio"


Eugénio


Ele tinha-se em grande conta. Quando lhe perguntavam o nome, respondia levantando ligeiramente o queixo e fazendo uma suave pausa entre “Eu” e “génio”.


12 / Carlota de Barros (Cabo Verde), "A rosa amarela"


A rosa amarela


A rosa amarela

Coroando-se de alegria

Nas manhãs de sol

Abre-se ao seu ardor


Um jovem caminhava

Solitarário ardendo de amor

Ao encontro da manhã.

De repente vê a rosa

Bela... aberta ao sol.

Fulgor de florir


Debruça-se e colhe-a.

Apelo da rosa amarela

Fremente de doçura

O jovem segura a rosa 

Mãos inocentes e alegres


E segue o seu caminho

A rosa apaixonadamente sua

E o jovem cantava

Acariciando a rosa

No ardor da manhã 


Seu coração arde  

A manhã brilha

À luz do sol

A rosa a luzir nas mãos do jovem.


Que direi mais da doçura

Do fulgor da rosa amarela

Antes que o jovem

Dela faça música?


Jovem e rosa descem 

Lentamente a colina

Falo agora de carícia

Ou só de memória de beijos?


Memória de beijos

O jovem desce a colina

Com sua rosa amarela.

Vai ao encontro do amor


Falo ainda da rosa amarela

Do jovem  de beijos  de ardor

De alguém que aguardava 

Apaixonadamente uma carícia

De seu amor sem saber 

Da doçura da rosa amarela 


Falo da memória de beijos

Da carícia da rosa amarela

Do ardor do jovem feliz

Da rosa amarela   agora 

Apaixonadamente música

Nas mãos de quem 

Aguardava o seu amor...



quarta-feira, 22 de janeiro de 2025

11 / Solange Firmino (Brasil), "Indecifrável"


Indecifrável


Eu me repito.

Colo post-it por aí

para não esquecer datas.

Atravesso a idade já gasta

comprando um espelho novo.

Vejo poesia em tudo,

procurando o traço ressonante.


Sou transparente,

mas ninguém nada sabe

sobre mim.

E sempre me repito.

terça-feira, 21 de janeiro de 2025

10 / Bob Dylan (Duluth, Minnesota, EUA, 1941) escrevendo à máquina

 

9 / Nicolau Saião, "Poema"


Poema


Não eram vulgares   as mãos de meu  Pai.

Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada

E quando pela noite o vento me fazia 

tremer

algo me entrava pelos olhos   e era

uma espécie de mapa

e eu lembrava-me   esforçando-me   contraindo

a cara

se era de facto uma luz o que se via

rés-vés ao telhado   muito perto

do grande portão de pedra em ruínas.


Naqueles tempos morávamos no campo

Muitos anos mais tarde visitei a casa

com dois filhos e vários garotos vizinhos

numa tarde ao fim dum passeio pelas matas

dos arredores. Ao canto da cozinha

estava um banco velho   e a madeira

ganhara uma cor acinzentada   devido

ao tempo. Disse-me depois

- enquanto comíamos pão com azeitonas -  

o dono dessa quinta alucinante

no páteo da outra moradia da herdade

que durante trinta e cinco anos

não morara ali ninguém. Éramos pois

nós os fantasmas daquele lugar.


Era no Inverno e as palavras   repousavam

e de vez em quando ouvia-se um ruído

como de turbilhão

- certo dia um pássaro morreu junto à 

porta da entrada, onde havia

uma planta como de antigas eras -


e algum tempo depois tive de partir  e olhar

o universo de tudo   de isto e daquilo


O oceano e as vozes recriavam-se algures.

domingo, 19 de janeiro de 2025

8 / De "Vinhetas", de Juergen Heinrich Maar (Brasil), excerto do texto "Livros, ontem e hoje", ed. Officio, Florianópolis, Brasil, 2023


Acabo de ser presenteado com um livro de Química destinado ao ensino médio, não um livro didáctico, muito menos um livro de texto, mas um livro que quer mostrar de modo atraente as "maravilhas da Química" (não é o título do livro). A inesperada doação ressuscitou na memória  (daquela parte da memória já considerada como 'inútil') uma fieira de textos de química destinados à faixa etária que começa, mas vai além do ensino médio. É bastante sugestivo o estabelecimento de comparações, e, atrevo-me a dizê-lo, de uma geralmente não vista linearidade na evolução desses acúmulos de conteúdos.

Fui aluno, estudante  e professor de Química. Aluno no final da década dde 1950, estudante na década de 1960, professor desde a década de 1970 e historiador da Química desde a década de 1990. Quando fui aluno de colégio, o ensino superior ainda ostentava suas cátedras vitalícias, cujos poderosos tritulares na maioria das vezes indicavam do rolde seus assistentes os seus sucessores. Quando fui estudante, o ensino superior já vinha passando  por sucessivas mudanças, algumas para o bem, outras eram antes prejudiciais. Agora, aposentado e independente, perco-me ao pensar no cipoal [dificuldade] de todos esses papéis, normas, relatórios, propostas, minutas... falta ainda o necessário distanciamento cronológico para uma avaliação  (mais ou menos) isenta. Mas já se pode perceber que crescentemente a fiorma passou a ser mais importante que o conteúdo.

Mas estou me distanciando do assunto evocado pelo presente em forma de livro. De modo algum eu tinha em mente uma discussão ou tratado sobre livros didácticos de Química, seria pretensioso da minha parte, já não sou entendido no assunto. Não sou entendido, mas tenho opinião, e principalmente décadas de experiência. E pretendia tão somente registar (longe de mim avaliar) como eram esses livros em cada época que vivenciei: livros texto e outras obras didáticas,manuais e roteiros de experiências, alguma literatura para "despertar o interesse" pela ciência (não levando em conta, nessa tareefa inútil, o que cada um realmente queria, mais ou menos como no "meninas na ciência" de hoje). 

domingo, 12 de janeiro de 2025

7 / Nicolau Saião, "Lima de Freitas"


Lima de Freitas


Há um verde   um amarelo   um branco

que crescem sobre o Mundo.   É a matéria

de aldeias e mares   o azulejo

de castelos e casebres   o perfil do Homem.


Diz-me como pintas   dir-te-ei  quem és


Há um azul    um negro   um violeta

para que seja íntima a nossa recordação

um braço de mulher   um camponês  olhando

o rosto obscuro e simples duma criança.


Diz-me como pintas    dir-te-ei  quem foste


Há um rôxo  e  um vermelho   há um cinzento

para que as coisas vulgares se transfigurem

para que numa sala a norte de todo o silêncio

a dupla substância perenemente brilhe.


Diz-me  como pintas    dir-te-ei  quem eras


Dir-te-ei das cores a natureza clara

dir-te-ei do tempo o número e o horizonte

e das raças extintas a floresta e o nome

e dos objectos a sua real dimensão


Porque sabes que o fogo é semelhante ao vento

e tudo em nós encontra a sua forma nova

- um pássaro  e um jardim   uma mesa   uma rua 

os vestígios duns passos num caminho secreto.


Diz-me como pintas   dir-te-ei  talvez

que nada se perdeu   nada se perderá

daquilo que dissemos daquilo que fizemos

com os traços e as cores da nossa mão queimada.


Diz-me  como pintas   dir-te-ei

o que as cores calam e cantam.


Lima de Freitas, serigrafia, 1964


terça-feira, 7 de janeiro de 2025

6 / "Cálculo das Impossibilidades", novo livro de Luís Palma Gomes

Com 60 páginas recheadas de excelente poesia, saiu no passado mês de Dezembro, em edição de autor, mais um livro de Luís Palma Gomes, "Cálculo das impossibilidades". A capa e a composição são de Beatriz Rações, a ilustração de Ricardo Andrade e a fotografia de Filipe Silva. A obra divide-se em quatro livros, nomeados como "Entristecer", "Transformar", "Desejar" e "Existir". Do primeiro, um poema:


Um ato isolado

Nuno Júdice, in memoriam


Às vezes tenho a sensação que só o poeta é feliz,

e por poucos segundos apenas.


Constrói uma casa com o vapor do duche,

senta-se depois confortável lá dentro

ou deita-se de barriga para cima

a contemplar o teto a passar.


Até que alguém - que não sabe ao que vem -

abre a porta e deixa entrar o vento da multidão.


Talvez poucos saibam, mas a poesia é um T0

num subúrbio discreto (para não lhe chamar outra coisa pior).

E torna-se insuportável com muita gente lá dentro.


É pena ter que dizê-lo, logo num dia tão bonito,

que a poesia é insocial.

O livro encontra-se à venda na Livraria Poesia Incompleta, Rua de São Ciro, 26 Lisboa (à Lapa, perto do Jardim da Estrela).

5 / Solange Firmino (Brasil), "Despertar"


Despertar


É preciso transgredir a distração da flor em gestação,

tocá-la infinitamente,

sorver-lhe o perfume,

soprar a gota de orvalho pousada em cada cor,

inventar um arco-íris

pelas arestas do vento,

abrir caminhos para a primavera.


A sombra se faz luz,

o inverno se desfolha.

Como se existisse um tempo das estações,

a primavera dá sinais,

despida das névoas,

como se fosse a primeira vez.

Foto Joaquim Saial


domingo, 5 de janeiro de 2025

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

3 / Carlota de Barros (Cabo Verde), "Silêncio, Pessoa quer dormir"

 

Silêncio!

                    Pessoa quer dormir


Encontrei na página de um

Livro de Poesias de Pessoa

A folha cor de vinho de recortes finíssimos

Que caíra a meus pés submissa e linda

Naquela tarde feliz de Outono


Doce folha que de novo me revelaste

O poema de Pessoa que me

Entrará na alma tão subtilmente!


[...]


“Cessa o teu canto!

Cessa, que enquanto

O ouvi ouvia

Uma outra voz

Como que vindo

Nos interstícios

Do brando encanto

Com que o teu canto

Vinha até nós”


[...]


Que canto seria este, Pessoa

Melodia que não havia

E se a lembras te faz chorar?


Essa voz, Pessoa

Encantamento

Silêncio que há a seguir

Ao canto

Alheio a ti

E a quem canta?


Ah o encantamento

Do canto que vem

A seguir a outro canto

Quem o cantou?

Quem te fez ouvir

Para além

Do que é o sentido

Que voz tem?


Vozes com sentidos opostos!

Ah! Minha folha cor de vinho

Talvez essa voz te tenha seguido

Até o Livro de Poesias

Nesta terra por onde

A alma de Pessoa divaga

Sem saberes que o fazias


Será que também provocaste em mim

Esse encantamento do canto

Que vem a seguir a outro?

Estou a ouvir esse canto

Para além do sentido

Que a voz tem!  


Mas quem a teria cantado?

Quem teria provocado em Pessoa

Esse encantamento

Que a mim também me encanta?


Porém Pessoa queria

O silêncio para dormir

E eu desejo tanto o silêncio

Para descansar!


Cessa teu canto!

Cessa!

Vem minha folha

Marca este poema de Pessoa

Que hoje reencontrei!


Um dia quero ouvir de novo


Esse canto que vem a seguir

A outro canto e encanta

Agora, silêncio!

Pessoa quer dormir

E eu desejo tanto descansar...