Prognósticos
Parece que hoje não chove,
parece.
Quando vai chover
as vozes são outras
e chove-me também.
Por isso, eu sei
que não vai chover,
como aqueles galos de plástico
que mudam de cor
quando isso acontece.
Prognósticos
Parece que hoje não chove,
parece.
Quando vai chover
as vozes são outras
e chove-me também.
Por isso, eu sei
que não vai chover,
como aqueles galos de plástico
que mudam de cor
quando isso acontece.
Pax simulata
Somos grandes gatos, tu e eu.
Por isso, dormitamos no sofá
a ouvir a imitação da chuva
que o filtro do aquário faz ressoar na sala.
Gostamos de estar assim,
horas e horas, tentando
acalmar a bravura do relógio.
Porque a paz não é bem a paz,
mas apenas a ausência da guerra.
Luís, o que queria trabalhar...
Luís era um pobre diabo que não tinha onde cair morto, como soe dizer-se.
A fome agora apertava e nem sequer um biscate, um mandado, nada lhe aparecia que lhe pudesse trazer uns pequenos trocos para uma bucha. Embora se envergonhasse já começava a pedir, depois que a polícia correu com ele do parque de estacionamento, mas até as pessoas com cara de caridosas lhe negavam a esmola.
Luís estava mesmo a passar mal. Deambulava por aquela rua abaixo, que vai dar ao antigo parque industrial, sem rumo definido, andando por andar. Passou ao portão de um velho pavilhão onde ouviu gente e máquinas a trabalhar. Veio-lhe à cabeça a resposta que alguém lhe dera ontem, quando pedia esmola: “Vai trabalhar, malandro…”. Será que aquele sujeito tinha razão?
Luís parou, passou as mãos pelos cabelos desgrenhados, na tentativa de melhorar a má imagem, sacudiu também a poeiras das calças e decidiu-se a bater ao portão. Eis que naquele instante este se entreabriu e surgiu um homem de meia-idade, bem vestido e de telemóvel ao ouvido, que esbracejava, visivelmente irritado e passou por ele sem o ver. Deu três ou quatro passos na calçada e voltou para junto do portão. “Tive de sair, que lá dentro com o barulho das máquinas não te consigo ouvir. Isto está mesmo impossível, não sei o que hei-de fazer. O pessoal está a faltar de uma maneira assustadora. Uma está de férias de parto, dois dos que mais falta me fazem estão doentes, já há uns dias. Outro telefonou-me ontem à noite a dizer que hoje não poderia vir porque lhe morreu o sogro. Até o rapaz dos recados hoje faltou. Não tenho ninguém para fazer a entrega das encomendas. Isto está um caos completo. E logo numa altura destas em que não posso fechar, que era a vontade que eu tinha…” E continuava a conversa gesticulando, dando pontapés em pedras da calçada, que não tinham culpa nenhuma, à beira de um ataque de nervos.
Luís apercebeu-se que aquele era o patrão. Tinha de lhe pedir emprego, mas era óbvio que aquele não era o momento apropriado.
Entretanto o homem, quando se voltou para entrar, reparou naquele rapaz andrajoso ali encostado ao portão. “Quem é você e o que quer daqui?”
Luís, um pouco envergonhado respondeu: “Sou o Luís e vinha pedir emprego pois preciso muito de trabalhar, em qualquer trabalho que seja, pois estou a passar fome. Agradecia-lhe muito.”
Diz o patrão: “Não é que eu não esteja a necessitar de colaboradores, mas agora não tenho tempo para o atender.”
“Não faz mal, eu posso ficar aqui à espera”, respondeu o Luís enquanto se sentava no chão, encostado ao portão de ferro, que estremeceu quando o patrão o fechou.
Já no gabinete, sentado à secretária, passava a mão pelo pouco cabelo num gesto de preocupação. Como é que vou entregar estas encomendas que têm que chegar aos clientes impreterivelmente hoje? Nem sequer posso sair daqui, com a falta do encarregado.
Entretanto, pela janela entreaberta ouvia-se da rua uma multidão que gritava: “Deixem trabalhar o Luís”. Iluminou-se. Correu ao portão a chamá-lo e disse-lhe: “Você vai entregar isto.”
Humilhação
Aquele leão era o mais destrambelhado e mau caçador do bando. Quando ao tentar atacar um elefante foi agarrado pela tromba deste e projectado contra o grande imbondeiro, o que mais o vexou não foi esse facto, mas sim ouvir toda uma alcateia de oito hienas a rir-se às gargalhadas da sua desgraça.
Há tantos que não pode haver tantos
porque se houvesse tantos, nem um havia.
E mesmo que houvesse um,
como seria ele singular e autêntico
se os outros eram tantos?
Não, não pode haver tantos
sem que rompesse de imediato
um escândalo e uma catástrofe,
por haver apenas um entre tantos.
e no final esse tal seria afinal nenhum,
para que continuasse a haver tantos,
apesar de não haver sequer um.
Noite de lua cheia
Tenho gravado nos meus olhos
O luar que me extasiou
Numa noite
Em que a lua cheia
Me seguiu
Calma e segura
Pelos caminhos por onde ia.
Ó noite de lua cheia
Tão calma ... tão bela...
Que ficaste gravada
Nos meus olhos
Até adormecer.
E como é belo o luar
Que tão naturalmente
Nos fica nas mãos e na alma!
Ó doce lua cheia
Tão calma tão bela
Que ficaste nos meus olhos
Para sempre.
Que mistérios escondes
Noite de lua cheia?
Ó noite de luar
Noite de doçura
Noite de mistério e luz
Como desejo ficar acordada
Para contemplar
Docemente o luar
Até brilhar a aurora!
E como é belo o luar
Nas minhas mãos
Naturalmente calmo
Naturalmente misterioso!
Ó lua cheia que enquanto
Eu adormecia feliz
Me uniste ao luar e à noite
Entre os mistérios da noite
E a doçura que o luar esconde!
Manuel Lopes escrevia em português, embora utilizasse nas suas obras expressões em crioulo cabo-verdiano. Foi um dos responsáveis por dar a conhecer ao mundo as calamidades, as secas e as mortes em São Vicente e, sobretudo, em Santo Antão.
Emigrou ainda jovem tendo-se a sua família fixado em 1919 em Coimbra (Portugal), onde fez os estudos liceais.
Quatro anos depois, voltou a Cabo Verde como funcionário de uma companhia inglesa.
Em 1936, fundou com Baltasar Lopes a revista "Claridade", de que sairiam nove números.
Em 1944 foi transferido para a ilha do Faial, nos Açores, onde viveu até se fixar em Lisboa, em 1959.
Regressou apenas por duas vezes ao seu arquipélago.
O texto acima (com adaptações) foi retirado da Wikipédia
Ficção
Chuva Braba, 1956/1957
O Galo Que Cantou na Baía (e outros contos cabo-verdianos), 1959
Os Flagelados do Vento Leste, 1959
Poesia
Horas Vagas, 1934
Poema de Quem Ficou, 1949
Folha Caída, 1960
Crioulo e Outros Poemas, 1964
Falucho Ancorado, 1997
Ensaio
Monografia Descritiva Regional, 1932
Paul, 1932
Temas Cabo-verdianos, 1950
Os Meios Pequenos e a Cultura, 1951
Reflexões Sobre a Literatura Caboverdiana, 1959
Dir-me-ás
Dir-me-ás
se são ou não
notícias auspiciosas
ou pântanos onde o corpo se afunda
ao som triunfante de uma valsa.
Dir-me-ás
se sinto dor ou prazer
ou se alterno entre ambos
como um pêndulo balançando
cada vez mais lento
sujeito que está ao atrito
da doença e do amor descasado.
Dir-me-ás...
O Arantes telefonou-me ainda não era meio-dia. Chovia de mansinho. Ele estava alegre, como sempre (vodka "Kamikaze"). "Congemino de que irás logo tu mascarado!", disse-me mostrando saber como iria ser no baile das Saavedras. "Aposto que vais de urso!", atirou gargalhando em stacato. Não lhe disse que sim nem que não. E ele, lampeiro: "Adeus, meu malandro! Daqui a bocado passo aí por casa para que me emprestes o sobretudo que a nena te ofereceu".
Estava nisto quando tocaram à campainha. Claro, era o Avelino. "Tou cá a pensar...", afirmou antes que eu respirasse fundo "Logo no baile das Reboredos... Sou capaz de jurar que vais de guarda-republicano!". Foi direito à garrafeira e, todo lampeiro, abalou-me com o "Queen Margot"! Ainda não se extinguira o estrépito na escada e já me repenicava o telelé. Naturalmente, era o Simões, o gorducho com o seu pigarro enervante. "Olha lá, parceiro do teu parceiro! Já pensei que logo irás de bispo à funçanata das Castro Henriques...", pespegou-me com vivacidade. "É ou não é, meu chapa?" E antes de me deixar reagir já me cravara a promessa firme de 50 euros sem caroço... Despediu-se velozmente e quem vejo aparecer no e-mail do meu portátil como sempre ligado? Evidentemente, o Belisário. "Meu garanhão", li na janela do sinistro aparelhómetro "Já cá se sabe que ao baile das Avintes tu irás de bombeiro. Faz-te de novas...E não te esqueças de me devolver aquela primeira edição que me surripiaste do Fernando Arrabal".
Suspirando, fui até à secretária. Nem tinha tido tempo de ler o correio do dia anterior. Uma carta. Hum, hum... Da fôfa, a Leopoldina. "Matulão, calculo que logo ao baile da Filarmónica não te sustenhas de ir de criada-para-todo-o-serviço. Sempre gostaste de meias pretas, eheh...". E dava-me logo o recado: "Não te esqueças de me levar a tua pulseira de ouro que eu depois devolvo-ta...".
A chuva parara. Olhei pela janela, com certa melancolia, as árvores que, muito quietas, estavam como sempre no enfiamento das ruas onde se cruzavam transeuntes com um ar algo abatido. Sentia-me meio patusco.
Respirei fundo.
Despi-me nas calmas. Pausadamente. Com prazer, com decisão. Pus-me mesmo sem cuecas, fui até à porta da entrada, fechei-a à chave e, voltando para o quarto, atirei-a lá para a gaveta de baixo do armário por uma fenda entreaberta que, depois, cerrei com esmero.
Desatei a rir de mansinho. Num estilo muito meu. Abri o ar condicionado, coloquei-o no quentinho, apanhei um exemplar do Boris Vian e estendi-me confortavelmente na doce cama.
Eles nunca tinham pensado que neste Carnaval eu iria ficar no leito mascarado de nudista...
In “O pincel honesto, contarelos para mortos-vivos”
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| Pintura de Nicolau Saião |
O animal
É só uma questão de começar: o animal começa
o rosto erguido, o olhar cego de terra
- que a sua santidade é a mais oculta de todas
inevitavelmente mudando e recompondo
as alavancas, o absurdo respirar das máquinas
na treva.
O animal sobe, pois
com o ombro reluzindo na madrugada
imenso, minúsculo
mais pequeno que o tempo impiedoso
cheirando a tojo e canela, a voz
inenarrável dos séculos. Talvez os nossos pais
alcancem ver a trémula
luz da lâmpada ao longe, talvez
tudo seja de repente claro e sóbrio
- arquitectura, objectos perpétuos, um sinal
de apaziguante secura, a fresca
lembrança da larga dependência onde guardavam
os frutos e a escuridão. Talvez
para eles haja choros e piedade, a semente
do silêncio.
E contudo o animal aspira o leve cheiro
que o circunda
a chama impenetrável de muitos anos presos
à sua recordação
O animal percorre agora os quartos e as salas
o perfil doloroso das montanhas
o animal vai existindo no mundo
é o torso do mundo
o animal penetra no elemento novo
fala com as palavras obscuras que se escondem
numa gaveta duma cidade destruída.
O animal tem dentro de si vestígios
de turva dissipação. O animal
sente o vento nas barbas, contenta-se
com um logro, um afago, um charco de sangue.
O animal arqueja, enquanto
a música se propaga entre os muros e as estátuas.
Talvez seja, quem sabe, uma aparência
verdadeiramente santa e tenebrosa. Por enquanto
a sua memória cobre-se de cicatrizes
parte copos, perde-se na contemplação
da alegria, como se
o animal existisse. É o calor
o êxtase de reconhecer, visível e subtil
de si mesmo. O animal
passa de um lugar a outro, simplesmente
e recompõe tenaz e sabiamente
a sua imagem destroçada.
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| "Elefante", Salvador Dali |
Da badana da capa do livro: José Vultos Sequeira nasceu em Mora, em 1944. Autodidacta, publicou os seus primeiros versos nos anos 70 na revista "Eva" e no jornal "O Diário", numa página de poesia e também de temática infanto-juvenil, da responsabilidade de Mário Castrim e Alice Vieira. Nos anos 80 publicou livros para crianças e poesia, premiados pela Associação Portuguesa de Escritores, Fundação Calouste Gulbenkian e Associação 25 de Abril. Tem mais de uma dezena de livros publicados. Dado que na badana da contracapa se indica que não se podem fazer reproduções da obra e não conhecemos o autor, ficará para outra ocasião a passagem no T&T de alguns dos seus interessantes poemas.
Título: "Onde Nasce a Água"
Colecção: palavras escritas
Revisão do texto: Ana Mendo
Design e paginação: Augusto Nunes
Impressão e acabamentos: Oficinas Gráficas do Banco de Portugal
Patrocínio: Grupo Desportivo e Cultural do Banco de Portugal
Eugénio
Ele tinha-se em grande conta. Quando lhe perguntavam o nome, respondia levantando ligeiramente o queixo e fazendo uma suave pausa entre “Eu” e “génio”.
A rosa amarela
A rosa amarela
Coroando-se de alegria
Nas manhãs de sol
Abre-se ao seu ardor
Um jovem caminhava
Solitarário ardendo de amor
Ao encontro da manhã.
De repente vê a rosa
Bela... aberta ao sol.
Fulgor de florir
Debruça-se e colhe-a.
Apelo da rosa amarela
Fremente de doçura
O jovem segura a rosa
Mãos inocentes e alegres
E segue o seu caminho
A rosa apaixonadamente sua
E o jovem cantava
Acariciando a rosa
No ardor da manhã
Seu coração arde
A manhã brilha
À luz do sol
A rosa a luzir nas mãos do jovem.
Que direi mais da doçura
Do fulgor da rosa amarela
Antes que o jovem
Dela faça música?
Jovem e rosa descem
Lentamente a colina
Falo agora de carícia
Ou só de memória de beijos?
Memória de beijos
O jovem desce a colina
Com sua rosa amarela.
Vai ao encontro do amor
Falo ainda da rosa amarela
Do jovem de beijos de ardor
De alguém que aguardava
Apaixonadamente uma carícia
De seu amor sem saber
Da doçura da rosa amarela
Falo da memória de beijos
Da carícia da rosa amarela
Do ardor do jovem feliz
Da rosa amarela agora
Apaixonadamente música
Nas mãos de quem
Aguardava o seu amor...
Indecifrável
Eu me repito.
Colo post-it por aí
para não esquecer datas.
Atravesso a idade já gasta
comprando um espelho novo.
Vejo poesia em tudo,
procurando o traço ressonante.
Sou transparente,
mas ninguém nada sabe
sobre mim.
E sempre me repito.
Poema
Não eram vulgares as mãos de meu Pai.
Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada
E quando pela noite o vento me fazia
tremer
algo me entrava pelos olhos e era
uma espécie de mapa
e eu lembrava-me esforçando-me contraindo
a cara
se era de facto uma luz o que se via
rés-vés ao telhado muito perto
do grande portão de pedra em ruínas.
Naqueles tempos morávamos no campo
Muitos anos mais tarde visitei a casa
com dois filhos e vários garotos vizinhos
numa tarde ao fim dum passeio pelas matas
dos arredores. Ao canto da cozinha
estava um banco velho e a madeira
ganhara uma cor acinzentada devido
ao tempo. Disse-me depois
- enquanto comíamos pão com azeitonas -
o dono dessa quinta alucinante
no páteo da outra moradia da herdade
que durante trinta e cinco anos
não morara ali ninguém. Éramos pois
nós os fantasmas daquele lugar.
Era no Inverno e as palavras repousavam
e de vez em quando ouvia-se um ruído
como de turbilhão
- certo dia um pássaro morreu junto à
porta da entrada, onde havia
uma planta como de antigas eras -
e algum tempo depois tive de partir e olhar
o universo de tudo de isto e daquilo
O oceano e as vozes recriavam-se algures.
Acabo de ser presenteado com um livro de Química destinado ao ensino médio, não um livro didáctico, muito menos um livro de texto, mas um livro que quer mostrar de modo atraente as "maravilhas da Química" (não é o título do livro). A inesperada doação ressuscitou na memória (daquela parte da memória já considerada como 'inútil') uma fieira de textos de química destinados à faixa etária que começa, mas vai além do ensino médio. É bastante sugestivo o estabelecimento de comparações, e, atrevo-me a dizê-lo, de uma geralmente não vista linearidade na evolução desses acúmulos de conteúdos.
Fui aluno, estudante e professor de Química. Aluno no final da década dde 1950, estudante na década de 1960, professor desde a década de 1970 e historiador da Química desde a década de 1990. Quando fui aluno de colégio, o ensino superior ainda ostentava suas cátedras vitalícias, cujos poderosos tritulares na maioria das vezes indicavam do rolde seus assistentes os seus sucessores. Quando fui estudante, o ensino superior já vinha passando por sucessivas mudanças, algumas para o bem, outras eram antes prejudiciais. Agora, aposentado e independente, perco-me ao pensar no cipoal [dificuldade] de todos esses papéis, normas, relatórios, propostas, minutas... falta ainda o necessário distanciamento cronológico para uma avaliação (mais ou menos) isenta. Mas já se pode perceber que crescentemente a fiorma passou a ser mais importante que o conteúdo.
Mas estou me distanciando do assunto evocado pelo presente em forma de livro. De modo algum eu tinha em mente uma discussão ou tratado sobre livros didácticos de Química, seria pretensioso da minha parte, já não sou entendido no assunto. Não sou entendido, mas tenho opinião, e principalmente décadas de experiência. E pretendia tão somente registar (longe de mim avaliar) como eram esses livros em cada época que vivenciei: livros texto e outras obras didáticas,manuais e roteiros de experiências, alguma literatura para "despertar o interesse" pela ciência (não levando em conta, nessa tareefa inútil, o que cada um realmente queria, mais ou menos como no "meninas na ciência" de hoje).
Lima de Freitas
Há um verde um amarelo um branco
que crescem sobre o Mundo. É a matéria
de aldeias e mares o azulejo
de castelos e casebres o perfil do Homem.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem és
Há um azul um negro um violeta
para que seja íntima a nossa recordação
um braço de mulher um camponês olhando
o rosto obscuro e simples duma criança.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem foste
Há um rôxo e um vermelho há um cinzento
para que as coisas vulgares se transfigurem
para que numa sala a norte de todo o silêncio
a dupla substância perenemente brilhe.
Diz-me como pintas dir-te-ei quem eras
Dir-te-ei das cores a natureza clara
dir-te-ei do tempo o número e o horizonte
e das raças extintas a floresta e o nome
e dos objectos a sua real dimensão
Porque sabes que o fogo é semelhante ao vento
e tudo em nós encontra a sua forma nova
- um pássaro e um jardim uma mesa uma rua
os vestígios duns passos num caminho secreto.
Diz-me como pintas dir-te-ei talvez
que nada se perdeu nada se perderá
daquilo que dissemos daquilo que fizemos
com os traços e as cores da nossa mão queimada.
Diz-me como pintas dir-te-ei
o que as cores calam e cantam.
![]() |
| Lima de Freitas, serigrafia, 1964 |
Com 60 páginas recheadas de excelente poesia, saiu no passado mês de Dezembro, em edição de autor, mais um livro de Luís Palma Gomes, "Cálculo das impossibilidades". A capa e a composição são de Beatriz Rações, a ilustração de Ricardo Andrade e a fotografia de Filipe Silva. A obra divide-se em quatro livros, nomeados como "Entristecer", "Transformar", "Desejar" e "Existir". Do primeiro, um poema:
Um ato isolado
Nuno Júdice, in memoriam
Às vezes tenho a sensação que só o poeta é feliz,
e por poucos segundos apenas.
Constrói uma casa com o vapor do duche,
senta-se depois confortável lá dentro
ou deita-se de barriga para cima
a contemplar o teto a passar.
Até que alguém - que não sabe ao que vem -
abre a porta e deixa entrar o vento da multidão.
Talvez poucos saibam, mas a poesia é um T0
num subúrbio discreto (para não lhe chamar outra coisa pior).
E torna-se insuportável com muita gente lá dentro.
É pena ter que dizê-lo, logo num dia tão bonito,
que a poesia é insocial.
O livro encontra-se à venda na Livraria Poesia Incompleta, Rua de São Ciro, 26 Lisboa (à Lapa, perto do Jardim da Estrela).
Despertar
É preciso transgredir a distração da flor em gestação,
tocá-la infinitamente,
sorver-lhe o perfume,
soprar a gota de orvalho pousada em cada cor,
inventar um arco-íris
pelas arestas do vento,
abrir caminhos para a primavera.
A sombra se faz luz,
o inverno se desfolha.
Como se existisse um tempo das estações,
a primavera dá sinais,
despida das névoas,
como se fosse a primeira vez.
![]() |
| Foto Joaquim Saial |
Sebo
Da alameda
antiga,
esquálida,
sai galeria
escadaria
para livros raros,
disseminando letras
entre bueiros.
Leitores
viajam.
Trazem,
de cada poço,
vida nova.
Silêncio!
Pessoa quer dormir
Encontrei na página de um
Livro de Poesias de Pessoa
A folha cor de vinho de recortes finíssimos
Que caíra a meus pés submissa e linda
Naquela tarde feliz de Outono
Doce folha que de novo me revelaste
O poema de Pessoa que me
Entrará na alma tão subtilmente!
[...]
“Cessa o teu canto!
Cessa, que enquanto
O ouvi ouvia
Uma outra voz
Como que vindo
Nos interstícios
Do brando encanto
Com que o teu canto
Vinha até nós”
[...]
Que canto seria este, Pessoa
Melodia que não havia
E se a lembras te faz chorar?
Essa voz, Pessoa
Encantamento
Silêncio que há a seguir
Ao canto
Alheio a ti
E a quem canta?
Ah o encantamento
Do canto que vem
A seguir a outro canto
Quem o cantou?
Quem te fez ouvir
Para além
Do que é o sentido
Que voz tem?
Vozes com sentidos opostos!
Ah! Minha folha cor de vinho
Talvez essa voz te tenha seguido
Até o Livro de Poesias
Nesta terra por onde
A alma de Pessoa divaga
Sem saberes que o fazias
Será que também provocaste em mim
Esse encantamento do canto
Que vem a seguir a outro?
Estou a ouvir esse canto
Para além do sentido
Que a voz tem!
Mas quem a teria cantado?
Quem teria provocado em Pessoa
Esse encantamento
Que a mim também me encanta?
Porém Pessoa queria
O silêncio para dormir
E eu desejo tanto o silêncio
Para descansar!
Cessa teu canto!
Cessa!
Vem minha folha
Marca este poema de Pessoa
Que hoje reencontrei!
Um dia quero ouvir de novo
Esse canto que vem a seguir
A outro canto e encanta
Agora, silêncio!
Pessoa quer dormir
E eu desejo tanto descansar...